Esta Velha Angústia

Poema de Álvaro de Campos, aqui tão bem dito por Vítor Oliveira.

(Gosto muito mais de dito do que declamado!)

IA

Esta velha angústia,

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

 

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto.

 

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.

Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos

Estou assim…

 

Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!

Por exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —

Júpiter, Jeová, a Humanidade —

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

 

Estala, coração de vidro pintado!

16-6-1934

Publicado por

isauraafonseca

Professora do Ensino Secundário - Português

Um pensamento em “Esta Velha Angústia”

  1. Obrigada pela partilha!
    É lindo e vou aproveitá-lo para alunos do 11º ano trabalharem o problema do sentido da existência.
    Já agora, votos de um Bom Ano e cá fico à espera de novas partilhas!
    Bjs

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